sexta-feira, 12 de março de 2010

Histórias de brasilidade - Memórias de Guerra

Por esse tempo, recebeu o regimento um contingente de recrutas do Rio Grande. eram quase todos mestiços de índio e branco, bonitos, fortes e moços. Melhores cavaleiros, mais guapos e elegantes sobre os arreios não era possível encontrar. Entre eles, havia um Antônio Chirú, a quem coube um potro zaino, grande, delgado, crinito, de uma cavalhada nova. Parecia um animal feroz. Para selá-lo foi prexiso vendar-lhe os olhos com um ponche e sujeitá-lo à força, passando-lhe um pialo ou pé de amigo. Concluída a operação, o jovem soldado, em mangas de camisa e arremangado, descalço, as calças arregaçadas até os joelhos, um lenço vermelho atado à cabeça com as pontas caídas para trás, na mão direita um rebenque curto de açouteira larga, colheu com a esquerda em voltas o maneador e, empunhando as fortes rédeas, saltou sobre o lombilho. Uns quatro gaúchos sujeitava o cavalo. Tiraram-lhe a venda e o rapaz gritou:
- Largue, deixe que vá!
Ouvimos um berro e a cabeça daquele animal furioso sumiu-se entre as pernas dianteiras. Lançou-se para a frente dando saltos medonhos.  Agachava-se rápido, como se fosse pranchear-se e dava priscos formidáveis para a direita e para a esquerda. Nunca vi velhaquear como aquele zaino. O gauchito brincava sobre ele, levantando as pernas e virando-se para a garupa sem dar importância àqueles corcovos desencontrados. Parecia estar pregado no lombilho. De vez em quando, dava um rebencaço ou, inclinando-se sobre o pescoço, tapeava o potro nos canilhos. De repente, partiu como uma flecha campo afora e em pouco tempo voltava ao trote, batendo o isqueiro para acender um cigarro, que tinha preparado na galopada.
Passados alguns dias, fui acompanhar ao hospital alguns doentes do regimento e vi o AnTônio Chiru dentro de uma carreta coberta de couro, deitado sobre pelegos de carneiro, manchados de pus varioloso. Estava disforme; desfigurado, o rosto enormemente inchado e cheio de pústulas denegridas, que exalavam cheiro nauseabundo. Perguntei-lhe como estava; respondeu em voz muito rouca: melhor. Com ele estavam outros bexiguentos. Mais de um delirava. Dois dias depois, enterraram-no naquele deserto, e todos os companheiros da carreta seguiram-no na viagem derradeira.
Era triste a sorte do soldado, naquela travessia, quando baixava doente ao hospital. Nas marchas seguidas que fazíamos, batidos sem cessar por chuvas copiosas através de campos alagados, passando banhados imensos e vadeando arroios cheios; que comodidades podiam ter os pobres enfermos? Mil vezes as violentas refregas dos dias de batalha do que as agonias das enfermarias em marcha.

(Extraído de Reminiscências da Campanha do Paraguai, de Dionísio Cerqueira, um bahiano, estudante de Medicina que se apresentou como soldado voluntário no Exército  e lutou do início ao fim desse conflito.)

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